Nova Lei da Água – «Muita parra e pouca uva?»

A Quercus – Associação Nacional de Conservação da Natureza, no âmbito da consulta pública que termina a 10 de Janeiro sobre a nova Lei-quadro da Água (que efectua a transposição da Directiva Quadro da Água 2000/60/CE) e o Decreto-Lei sobre Titularidade dos Recursos Hídricos, faz um ponto de situação muito negativo sobre a eficácia da legislação no domínio dos recursos hídricos.

 

Efectivamente, para a Quercus, o problema fundamental do pacote legislativo em questão, é a enorme e abissal diferença entre os princípios legislativos, de uma forma geral bem consagrados na Directiva Comunitária e também em grande parte da proposta de legislação em causa, e todo o historial de ineficiência, ineficácia, falta de avaliação e ausência de resultados e incapacidade para mudar a situação do país no que respeita aos recursos hídricos, tema prioritário da política de ambiente ao longo de toda a última década. Portugal continua a ter que resolver os problemas designados de primeira geração depois de milhões e milhões de euros de investimento, tendo que executar uma Directiva que apela a intervenções muito mais complexas e integradoras.

 

São exemplo disso:

 

– As enormes falhas de fiscalização dos poluidores, permanentemente patentes em inúmeros episódios de poluição;

 

– Existirem cerca de 200 mil habitantes servidos com água de consumo humano com má qualidade;

 

– Os fracos índices de atendimento em termos de quantidade e qualidade no que respeita ao tratamento das águas residuais;

 

– A incapacidade de por em prática até agora os princípios do poluidor-pagador e utilizador-pagador; o primeiro agora obrigatório no quadro da Directiva-Quadro, mas que estão patentes na legislação desde 1987 (Lei de Bases do Ambiente);

 

– A ausência de um sistema de informação com resultados consultáveis para áreas tão sensíveis como os estuários;

 

– A existência de um Plano Nacional da Água, de Planos de Gestão de Bacias Hidrográficas e de um Programa Nacional para o Uso Eficiente da Água, que estão literalmente estagnados, sendo que os Conselhos de Bacia não reúnem há meses ou mesmo anos.

 

As propostas em causa, do ponto de vista da garantia de uma mudança estratégica na política de recursos hídricos, depois de uma longa maturação, (que ao se prolongar para além de 22 de Dezembro de 2003 nos coloca já em incumprimento no que respeita à transposição da Directiva-Quadro), merecem-nos assim o maior pessimismo não do ponto de vista teórico, mas principalmente no que respeita à sua aplicabilidade e aos resultados que serão obtidos.

 

A Quercus apresenta em seguida uma crítica às propostas que estão em discussão:

 

– Regime de titularidade dos recursos hídricos é positivo, as Zonas Ameaçadas pelo Mar são esquecidas na Lei-Quadro – a formulação jurídica sobre a titularidade dos recursos hídricos é positiva e parece resolver de forma mais clara os limites de propriedade e de intervenção do estado no que se refere aos recursos hídricos; aliás, amplia o conceito de Zonas Adjacentes, que passam a incluir as Zonas Ameaçadas pelas Cheias e as Zonas Ameaçadas pelo Mar, algo que será cada vez mais frequente devido aos problemas de erosão costeira cada vez mais relevantes na nossa costa, em parte resultantes da subida do nível do mar devido às alterações climáticas; porém, este novo conceito de Zonas Ameaçadas pelo Mar é esquecido no Lei-Quadro da Água onde deverá obviamente ser contemplado.

 

– Administrações de Bacia Hidrográfica arriscam-se a continuar o status quo de desarticulação na gestão das bacias hidrográficas – o objectivo do quadro definido foi evitar a ruptura com a prática actual, isto é, irá garantir que o licenciamento continue a ser efectuado no âmbito dos organismos regionais (Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional); actualmente, vários rios têm repartido o licenciamento e fiscalização das utilizações e actividades relacionadas com os recursos hídricos por várias regiões (por exemplo, o Sado, entre Lisboa e Vale do Tejo e Alentejo), o que não tem funcionado, porque não há comunicação entre os organismos regionais; o novo modelo arrisca-se a criar uma nova estrutura que mantém essa desarticulação, pois a proposta de legislação não define nem obriga a mecanismos de interligação e comunicação.

 

– Planos, Instrumentos e Programas a mais – para além do Plano Nacional da Água e dos Planos de Gestão de Bacia Hidrográfica, existe uma verdadeira imensidão de programas, muitos deles a detalhar de acordo com a legislação a publicar, todos eles em áreas pertinentes, mas que em nosso entender devem ser objecto principalmente de matérias / componentes consignadas e aprovadas no quadro dos Planos de Gestão de Bacia Hidrográfica; muitos dos planos, instrumentos e programas requerem aliás alterações dos Planos Municipais de Ordenamento do Território – as regras de articulação entre estes diferentes Planos (os de Bacia e os Municipais), não são esclarecidas nem mencionadas.

 

– Regime de concessões admite prazo exagerado – a legislação proposta admite que a concessão de utilização do domínio hídrico possa ir até 75 anos, o que é claramente exagerado dado que apenas algumas utilizações (caso por exemplo das barragens), justifica tal período; esta discricionariedade deveria ser evitada, detalhando o prazo máximo de acordo com as utilizações em causa, mesmo que de forma agrupada.

 

– Taxas ambientais vão ser pouco aplicadas – o facto de se isentar de taxas as utilização que não sejam susceptíveis de criar um impacto significativo no estado das águas e dos ecossistemas é uma abertura evidente para a sua não aplicação face à discricionariedade introduzida pelo termo significativo; em nosso entender, as taxas ambientais, no princípio do poluidor-pagador, deve ser tão abrangente quanto possível, traduzindo proporcionalmente os impactes das utilizações mas não conduzindo a situações de isenção.

 

– Autoridades portuárias continuam a administrar áreas sem vocação para essa actividade – politicamente esta proposta de legislação é enfraquecida por não ultrapassar a controvérsia de há muito existente de passar a retirar às autoridades portuárias zonas que não podem ser claramente utilizadas para fins portuários; tal acontece nos estuários, onde enormes extensões de sapal ou de outros ecossistemas são pretensamente geridas pelas administrações portuárias que não têm qualquer vocação para o efeito.

 

– A água não é um produto comercial como outro qualquer – Apesar da Directiva referir claramente que “a água não é um produto comercial como outro qualquer” a proposta de Lei-quadro da Água em discussão não faz referência a este importante princípio, podendo deixar as portas semi-abertas para um uso cada vez mais privativo da água que não tenha em conta a salvaguarda da sua qualidade como um bem público e ambiental.

 

– Excepções e omissões a evitar – A proposta de Lei permite o deferimento tácito relativamente a pedidos de autorização para utilização de recursos hídricos e dispensas de autorização para o desenvolvimento de determinadas actividades nos leitos, margens e águas particulares, desde que prevista nos planos. O documento também não faz referência à necessidade de salvaguardar os habitats naturais quando se refere à limpeza e desobstrução das linhas de água. Estas excepções e omissões poderão constituir formas de contornar a lei e a necessidade de salvaguardar os recursos hídricos e os ecossistemas a eles associados.

 

– Disponibilização de informação – Cada vez mais a Internet assume-se como um veículo privilegiado de disponibilização de informação aos cidadãos e incentivo à participação pública. Nesse sentido, a Lei-quadro da Água deveria prever a disponibilização actualizada do Sistema Nacional de Informação de Recursos Hídricos e de documentos disponíveis ao público no site da Autoridade Nacional da Água.

 

A Direcção Nacional da Quercus – Associação Nacional de Conservação da Natureza

Lisboa, 9 de Janeiro de 2004