Opinião: Caminhos Convergentes para um Futuro Possível

CAMINHOS CONVERGENTES PARA UM FUTURO POSSÍVEL

Joana Guerra Tadeu | 12 de abril de 2025 | Casa do Impacto

Opinião

Na conferência organizada pela Quercus, “Caminhos Cruzados para a Neutralidade Carbónica”, cruzámos caminhos: políticos, académicos, científicos, empresariais, ativistas. Cruzámos saberes, estratégias e convicções, tal como prometia o programa, mas também cruzámos frustrações, desconfianças e urgências. E é importante que o digamos sem pudor: o desconforto sempre fez e fará parte do caminho da mudança.

Falámos de política, ciência, energia, educação, governança, participação, comunicação, desobediência, e de limites. Ecológicos, políticos, emocionais; dos limites da nossa paciência e da nossa fé.

 

TÉCNICA, NARRATIVA E PODER

O governo tem uma estratégia para “descarbonizar para crescer”. Mas sabemos que não há abundância onde as políticas não são sistémicas. “Temos de atrair investimento, sim — mas ele tem de ser sustentável, inclusivo e parte de políticas públicas integradas”, disse-nos Susana Escária, da Secretaria-Geral do Ambiente que também nomeou o setor empresarial como “principal ator” da ação climática – afinal, foram o principal ator da crise climática. “O lado da oferta tem de ser orientado com a cenoura e com o pau”, rematou a representante do órgão governativo. 

É simples, o que pedimos a quem nos governa e a quem nos paga os salários: honestidade. Em Portugal, encerrámos as centrais mais poluentes do País, não porque poluem, mas porque deixaram de ser lucrativas. E celebramos em grande vitórias pequenas que ainda nem sequer travámos: comparamos as emissões de hoje com as de 2005 (o pico de Portugal), em vez de utilizarmos a referência de 1990, como fazem as Nações Unidas. Na Europa, teimamos que vamos à frente numa corrida onde somos os únicos a correr. Que criatividade têm as elites com poder!

“Não podemos continuar a tratar a emergência climática como uma questão meramente técnica. A técnica é política.” E isso exige que deixemos de usar a neutralidade técnica como desculpa para a falta de ambição política. Foi o que nos lembrou Vera Ferreira, investigadora em Alterações Climáticas e Políticas Públicas.

E quanto a acusar as comunidades que resistem a megaprojetos de produção de energia renovável de quererem fazer a transição energética, mas “not in my backyard”? Pejorativo e injusto: essas comunidades sabem o que querem e o que não querem, sabem melhor que ninguém o que é bom para a sua terra e o que a vai destruir, e não querem ver o seu território a ser espoliado por grandes empresas. Não são ingratos nem ignorantes. São resistentes.

Precisamos de mais e melhores mecanismos de participação, mais democráticos na raiz e descentralizados nas operações. Que reconheçam a capacidade das comunidades exercerem poder, tomarem decisões e cuidarem do território onde vivem, em coerência com as suas necessidades, conhecimentos e relações locais, e que façam delas parte da governança dos projetos desde o desenho até à avaliação contínua dos impactos. Precisamos de mais territorialidade.

Precisamos de organizar o território, os recursos e as atividades humanas com base em critérios de justiça social, equilíbrio ecológico e participação cidadã efetiva. De substituir a lógica do crescimento económico infinito por uma lógica de bem-viver coletivo, onde os limites do planeta são tratados como fronteiras políticas — e não meramente técnicas. Precisamos de planeamento democrático e ecológico.

Sabemos que a crise climática é existencial, mas continua a ser uma nota de rodapé nos orçamentos públicos. Está presa aos mesmos tetos da dívida que não se aplicam à defesa, à banca ou a grandes resgates económicos. Vivemos uma emergência sem excecionalismo.

Enquanto os governos mobilizam recursos ilimitados para armamento, hesitam em investir com ambição no combate à crise que ameaça a base da vida. É tempo de declarar o óbvio: a emergência climática exige o mesmo nível de resposta que uma guerra. E o mesmo grau de coragem política, rapidez orçamental e mobilização coletiva. Não esqueçamos que o investimento público orienta o privado — e se o Estado hesita, o mercado especula.

Continuamos a imputar aos jovens a responsabilidade de nos salvar. Insistimos na educação como se ainda houvesse tempo para educar. E seguimos a educar para obedecer, quando já devíamos ter aprendido a importância de educar para desobedecer. Para questionar. Para resistir. Para imaginar alternativas. Mas em vez disso, repetimos o mesmo erro nos discursos públicos: chamamos “comunicação” a um site com PDFs ou uma aplicação sem downloads.

O catastrofismo gera ansiedade e impotência. O excesso de informação dessensibiliza. E campanhas mal desenhadas não mudam o mundo — dão-lhe razão. Comunicar, neste tempo, tem de ser mais do que emitir informação: tem de ser relação e mobilização. Como lembrou Gabriela Moutinho, do projeto de participação cívica MyPolis, “se a comunicação não for uma ferramenta de escuta e envolvimento, então não estamos realmente a comunicar.”

E por falar em comunicação: porque é que acabamos sempre a falar de crianças e de reciclagem nestas mesas institucionais?! Como se a crise climática se resolvesse com um ecoponto e o futuro fosse uma cartolina colorida afixada no placard de uma escola primária.

Está na hora de deixar a pedagogia da obediência e abraçar a pedagogia da emergência — para adultos! Uma que nos convoque à ação, à imaginação, à rebeldia. Porque o que está em jogo não é o comportamento — é a sobrevivência.

 

FORÇA POPULAR CONTRA A FRAQUEZA POLÍTICA

Num painel sobre ativismo, a primeira pergunta foi a que se impõe, por força do que os media nos mostram sobre o impacto de quem coloca o corpo onde o sistema coloca a indiferença: a desobediência civil é eficaz? E respondeu-se com certeza: sim.

Funcionou no Movimento pelos Direitos Civis nos EUA, com Rosa Parks e milhares que marcharam ilegalmente para acabar com a segregação racial. Funcionou com as sufragistas que foram presas por protestar sem licença, fazer greve de fome e desafiar o poder, numa luta com efeitos por todo o mundo. Funcionou contra o apartheid na África do Sul, com boicotes e manifestações que forçaram o fim do regime.

A desobediência funciona. Como táctica. Mas não ganha sozinha. Precisa de se integrar numa estratégia com múltiplas formas de luta, e coragem para admitir a verdade: quem fragmenta o movimento não são os que desobedecem — são os que os condenam. Os que se recusam a ser honestos sobre o estado a que chegámos. Os que mantêm ambições pequenas e orçamentos tímidos e os que acham que ainda há tempo para chegar a um consenso. Os que condicionam a legitimidade de quem vai na vanguarda e assim bloqueiam a convergência de que precisamos – entre ações radicais e ambições institucionais, entre urgência e realismo.

Mais acolhimento no movimento exige mais acolhimento de quem, seja por privilégio ou por absoluta necessidade, opta por desobedecer. Mais acolhimento a quem empresta os seus corpos e os seus futuros ao serviço da luta. Àqueles a quem perguntam porque não têm calma. “Porque vestem plástico?”. Àqueles que sabem – como muitos de nós ainda fingem não saber – que neste sistema, a coerência total é impossível. E que esperar por ela é o melhor truque para não fazer nada.

O incómodo é obrigatório. E o que mais me incomodou nesta conferência não foi uma frase institucional nem uma meta frouxa. Foi uma pergunta vinda do público.

Alguém teve a audácia de perguntar às mais corajosas mulheres-meninas, que hipotecam as suas vidas para nos garantir um futuro, se se imaginam a ir a pé para a escola, a não comer comida cozinhada num forno a gás, a deixar de ter telemóvel.

A quem faz estas perguntas, devolvo outras: imagina-se a viver com 25 litros de água por dia em vez de 200? A deixar de tomar banho? A perder a casa numa inundação? A empunhar uma arma para proteger a pouca comida que produz num metro quadradinho de terra? Porque é isso que a ciência projeta para Portugal em 2040 se não atingirmos a neutralidade carbónica até 2030.

A transição será sempre difícil. E será tão abrupta quanto for atrasada. Mas os riscos da transição são temporários. Os riscos de não fazer nada vão durar para sempre.

Responsabilizar todas as pessoas pela ação necessária não é culpabilizá-las pelo problema. Não é preciso ser especialista para agir. Não é preciso ser puro para resistir. A impotência é uma mentira. E o slacktivismo, o ativismo de sofá é uma entrada para o ativismo, não uma saída. Antes isso que nada!

Mas há quem insista em pedir soluções ao sistema que criou o problema.

Pedir aos governos e às empresas que desfaçam a teia de que se alimentam não vai funcionar, porque fechar todas as centrais fósseis até 2030 é incompatível com a sobrevivência do capitalismo. Governos e empresas não podem liderar a luta contra a crise climática, não porque não saibam o que fazer, mas porque não sobreviveriam à solução.
Pedir ajuda a quem depende do problema é como pedir liberdade a um ditador.

E, ainda assim, as jovens ativistas não desistem de convocar os que ocupam o poder à coragem de que o tempo precisa: todos os partidos que tencionem formar governo após 18 de maio devem comprometer-se com o fim ao fóssil até 2030. Caso contrário, não terão legitimidade para governar. Dizem elas – e digo eu.

 

IMAGINAÇÃO, REGENERAÇÃO E DECRESCIMENTO

Mas e se imaginássemos a utopia em vez da distopia?

Neste painel ouvimos quem já está a fazer o futuro acontecer: Falou-se de energia de produção descentralizada e gestão comunitária, como já faz a Coopérnico, que devolve às pessoas o poder de decidir o que produzem, para quem, e a que preço. Falou-se de soberania alimentar, apoiada em redes como a Rizoma, que ligam quem cultiva a quem come, encurtam distâncias entre campo e cidade e constroem relações justas entre produção e consumo. Falou-se de regeneração pelo uso, onde se restaura solo e comunidade, como nos mostra a Terra Sintrópica. Falou-se de decrescimento, não como escassez, mas como escolha política e cultural, como defende a Rede Para o Decrescimento.

E se, em vez do colapso, nos déssemos o direito de imaginar um Portugal onde tudo aquilo que sabemos que é possível e urgente já está a acontecer, por todo o lado?

É 2030. Portugal já vive sem fósseis.

Os edifícios têm painéis solares nos telhados e produzem energia distribuída pela cooperativa do bairro. Lá, também se vendem os alimentos produzidos na horta da escola, cultivada por quem aprende e quem ensina.

Mas a cooperativa não é só mercearia: também alimenta o bairro com cultura, habitação, cuidados e tempo. Um lugar onde a economia se encontra com o cuidado, onde a democracia se faz com tempo, onde resolvemos o dia a dia, sem nos fragmentarmos. É onde se decide, se cuida e se convive. É onde vamos buscar pão, conversar com vizinhos, participar em assembleias, deixar os miúdos depois das aulas, levar os avós a um concerto. É um espaço de integralidade.

As crianças estão na escola para aprender e brincar, não para lutar por um futuro que lhes foge. O bairro cuida de si e ninguém fica para trás.

A regeneração é real e concreta. O Alentejo floresce. O interior é vivo.

É um futuro sem ecopontos — porque avançámos para lá da cultura descartável e deixámos de produzir lixo antes sequer de o separar.

A economia deixou de crescer. Agora queremos melhor, não mais.

Temos emprego pleno e trabalhamos menos horas, ganhamos salários dignos e temos tempo para cuidar, conviver e participar. E participamos. Como nunca participámos antes!

A organização é simples e poderosa: grupos de trabalho, assembleias abertas, decisões por consentimento. Cada pessoa sabe que pode decidir sobre aquilo que constrói. A democracia respira. Discute-se nos cafés, decide-se nas praças. Os territórios decidem por si — e para si.

As injustiças diminuíram. Reparámos. Redistribuímos. Regenerámos.

Este é o futuro que teimam em recusar-nos, mas que os mais ambiciosos de nós já estão a construir. Só falta escalar. E para isso, é necessária vontade… não: coragem política.

Claro que as questões técnicas terão de ser adaptadas ao território, às pessoas, às condições locais. Mas a capacidade de imaginar este futuro é democrática e está dentro de cada uma de nós. Só temos de a ativar, e muitos dos presentes trabalham todos os dias para essa ativação.

 

CONVERGIR PARA AVANÇAR

Esta conferência juntou vozes diversas, mas a conversa tem de se transformar em ação. Caminhos cruzados não bastam. Precisamos de caminhos convergentes.

Convergência entre o que dizemos e o que fazemos.

Entre protesto e política.

Entre metas e meios.

Entre discursos e decisões.

Entre centro e margens.

Entre o que o planeta permite e o que o sistema impõe.

Precisamos de convergir na verdade: a solução será anticapitalista e dentro dos prazos da ciência. A verdade de que a transição exige redistribuição, reparação, regeneração e revolução. A verdade de que “descarbonizar para crescer” é uma contradição: não podemos permitir que quem nos governa continue a prometer crescimento económico infinito num planeta a rebentar pelas costuras.

Há riscos profundos em focarmo-nos exclusivamente em soluções globais decididas por quem detém o poder político e económico: quando as decisões são tomadas longe dos territórios e das pessoas, ignoram contextos, perpetuam desigualdades e servem muitas vezes para proteger os interesses de quem mais contribuiu para o problema.

É por isso que precisamos de tomar partido: não por um modelo abstrato de transição, mas por soluções locais, justas e participadas. Precisamos de nos responsabilizar pela mudança — não com culpa, mas com compromisso. Porque só quando agimos no lugar onde estamos, com quem nos rodeia, é que transformamos verdadeiramente o sistema. E porque esperar que o topo mude sozinho é perpetuar a mesma lógica que nos trouxe até aqui.

Se queremos neutralidade carbónica até 2030, ela não pode ser apenas técnica. Tem de ser justa, democrática, plural, concreta e coletiva. E acima de tudo, tem de ser agora.

Ainda vamos a tempo. A revolução de que precisamos ainda pode ser regenerativa — para o planeta, para a democracia e para a vida. Porque o futuro não começa em 2030. O futuro começou ontem. E estamos atrasadas.