Mudança da Legislação sobre Resíduos dá mais responsabilidade às autarquias e abre portas às novas lixeiras do século XXI

Quercus critica algumas das medidas propostas, pelos riscos que poderão acarretar a nível ambiental, apesar de reconhecer que algumas alterações introduzidas serão muito positivas para o país, em matéria de gestão de resíduos. A proposta em discussão sobre o novo regime geral de gestão de resíduos abre novos caminhos para uma mudança no paradigma da gestão de resíduos em Portugal, que se pretende que seja urgente, mas deixa em aberto um caminho que poderá ser muito perigoso no futuro, e que o país poderá vir a pagar muito caro.

Este novo diploma propõe a introdução de alterações cruciais no setor da gestão de resíduos em Portugal, que irão provocar efeitos muito positivos, mas por outro lado pode introduz algumas fragilidades.
Salientamos as principais novidades deste diploma, que traduz o resultado da transposição de diretivas comunitárias, bem como de outras medidas nacionais, com o objetivo de promover o respeito pela hierarquia da gestão de resíduos.

A Quercus salienta os pontos frágeis e fortes deste documento:

Pontos frágeis:

1)    Fim do limite para a classificação de resíduos: é eliminada a anterior definição  de “resíduo urbano”, no critério que estabelecia a responsabilidade pela gestão às autarquias sempre que a produção de resíduos fosse inferior a 1.100 litros por produtor. Esta mudança trará uma maior responsabilidade para as autarquias que se vêm a braços com uma maior diversidade de produtores de resíduos urbanos, podendo não conseguir assegurar uma resposta eficaz para este volume de produção.

2)    Obrigatoriedade por parte dos produtores de gestão de embalagens reutilizáveis. A proposta introduz a necessidade da criação de um sistema independente para os produtores que colocam no mercado embalagens reutilizáveis, sem a mesma permitir o retorno destas ao mercado. O que parece criar alguma confusão com “embalagens retornáveis”. Parece-nos um contracenso a não reutilização destas embalagens e o seu encaminhamento como resíduo, quando as mesmas são designadas como “reutilizáveis”.

3)    É introduzida uma nova designação para “enchimento” relativa a qualquer operação de valorização em que, para efeitos de recuperação em zonas escavadas ou para fins de engenharia paisagística, são empregues «resíduos não perigosos» adequados para esse fim em substituição de outros materiais que não são resíduos. Esta alteração poderá potenciar o surgimento das “lixeiras do século XXI”, na medida em que locais que não estão impermeabilizados poderão aceitar resíduos para sua recuperação. A nosso  ver, esta recuperação apenas deveria ser realizada com recurso a solos de escavação não contaminado, caso contrário continuaremos a assistir ao uso de pedreiras e areeiros desativados a serem usados como depósitos de lixo.

4)    Os valores-limite para o teor total de parâmetros orgânicos, HAP (hidrocarbonetos aromáticos policiclicos), nos critérios de admissão em aterros de resíduos inertes ou para aterros de resíduos não perigosos, contínua nos 100mg/kg. Valor que não acompanha a média europeia que ronda valores- limite na ordem dos 40mg/kg.

5)    A partir de 1 de janeiro de 2023, o diploma permite ainda que seja atribuído  um custo à água da torneira fornecida aos clientes no canal HORECA. Este custo, mesmo que simbólico, poderá promover a procura pela alternativa da água engarrafada, resultando num aumento do consumo de recursos e produção de resíduos.

6)    Taxas de Gestão de Resíduos (TGR) reduzidas para as operações de valorização energética, ou para a gestão de resíduos provenientes de origens não nacionais. Este valor reduzido poderá promover uma contínua procura de Portugal como um destino barato para dar solução ao problema dos resíduos de outros países.

7)    Nos aterros para resíduos não perigosos podem ser depositados resíduos urbanos. Existem respostas adequadas para este tipo de resíduos – aterros  para resíduos urbanos, não se justificando que os mesmos sejam depositados em aterros para resíduos de outras natureza.


Pontos fortes:

1)    Proibição da deposição de resíduos que tenham sido objeto de recolha seletiva para reutilização e reciclagem. É fundamental promover campanhas de informação à população para a adoção de boas práticas na recolha de resíduos, bem como penalizações pelo não cumprimento, assim como uma fiscalização ajustada para impedir que estes resíduos sejam diretamente depositados em aterros.

2)    Soluções e respostas locais para a receção de resíduos, onde estes possam ser armazenados ou triados, podendo incluir-se na rede de recolha dos sistemas integrados ou individuais de gestão de fluxos específicos de resíduos. Este é um fator de uma importância fulcral para a resposta de próximidade à população, pois garante a maior e melhor resposta à recolha dos resíduos produzidos pela população.

3)    Oferta de áreas dedicadas a bebidas em embalagens reutilizáveis e a produtos a granel. Medida importante para reduzir o uso de embalagens e a produção de resíduos não recicláveis.

4)    Promover a oferta de embalagens feitas com um só material ou, quando tal  não for possível, embalagens em que os diferentes materiais possam ser facilmente separados. Esta medida permite simplificar a separação e o encaminhamento destas embalagens para reciclagem.

5)    Proibir a disponibilização gratuita de sacos de caixa, isto é, sacos com ou sem pega, incluindo bolsas e cartuchos, feitos de qualquer material, disponibilizados ao consumidor no ato do pagamento, para o transporte dos produtos adquiridos. Aqui será notório a redução deste tipo de resíduo, que muitas vezes não é reutilizado nem encaminhado para reciclagem.

6)    Marcação das embalagens recicláveis com a indicação do seu destino correto, ou seja, a cor do ecoponto onde estas devem ser colocadas. Proibida a utilizacao do símbolo tidy-man.  Esta nova informação ajuda a população a saber o ecoponto certo para colocar os seus resíduos, contribuindo assim para o aumento dos níveis de reciclagem.

7)    A possibilidade de utilizar os pneus usados em trabalhos de construção civil e obras públicas. Obrigatoriedade de incorporação de material reciclado nos produtos e materiais, com exceção dos materiais provenientes de matérias- primas renováveis, exceto se a análise do ciclo de vida não o justificar.
É de extrema importância para promover o escoamento de materiais usados e resíduos para operações de reutilização, e garantindo assim uma economia mais circular.

8)    Os produtores de equipamento elétricos e eletrónicos (EEE) deverão conceber e fabricar produtos mais sustentáveis, atendendo a questões como a eficiência na utilização dos recursos, a redução da presença de produtos químicos perigosos, a durabilidade, (inclusive em termos de tempo de vida útil) e a ausência de obsolescência programada. Esta medida vem contrariar uma realidade que não pode continuar, dado o enorme volume de resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos que são produzidos anualmente.

9)    Proibida da impressão e distribuição sistemática de recibos nas áreas de vendas em   estabelecimentos   abertos   ao  público;  cartões   bancários;  bilhetes  por máquinas; vouchers e ticket’s que visam promover ou reduzir os preços de venda de produtos ou serviços, salvo se o cliente o solicitar. Não faz sentido nos dias de hoje, atendendo às restrições sanitárias, e à capacidade dos sistemas informáticos disponíveis, continuarmos a recorrer ao papel.

10)    Obrigatoriedade de aceitar que os seus clientes utilizem os seus próprios recipientes, a partir de 1 de janeiro de 2022, desde que os mesmos se apresentem limpos, em bom estado de conservação, tenham as características próprias para os fins a que se destinam e não sejam suscetíveis de colocar em risco a segurança alimentar, em estabelecimentos que forneçam refeições prontas a consumir em regime de pronto a comer. Uma ideia que a Quercus defende desde há alguns anos a esta parte, de forma a reduzir o recurso aos descartáveis.

11)    Metas e objetivos definidos pelas diretivas europeias e transpostas para esta legislação, nomeadamente para a prevenção, reutilização e reciclagem de embalagens de papel, metal, plástico e vidro, bio-resíduos, têxteis, óleos alimentares usados e resíduos perigosos, entre as quais as mais imediatas:
–    Em 2025, reduzir em 10 % a quantidade de resíduos urbanos produzidos por habitante face aos valores de 2018;
–    Em 2025, reduzir a quantidade de resíduos alimentares em 25 % face aos valores de 2015;
–    Em 2025, reduzir em 5 % a quantidade de resíduos em particular no setor de construção civil e obras públicas, face aos valores de 2018;
–    Até 2020, um aumento mínimo global para 50 %, em peso, e até 2025 um aumento mínimo para 55 %, relativamente a preparação para a reutilização e a reciclagem de resíduos urbanos;
–    Até 2020, um aumento mínimo para 70 %, em peso, relativamente a preparação para a reutilização, de resíduos de obras não perigosos;
–    Até 2025, um aumento mínimo para 55 %, em peso, da preparação para a reutilização e da reciclagem de resíduos urbanos, em que, pelo menos, 5 % será resultante da preparação para reutilização de têxteis, equipamentos elétricos e eletrónicos, móveis e outros resíduos adequados para efeitos de preparação para reutilização.

Estas metas são importantes para promover a redução da produção e a reutilização de resíduos, como garantir uma maior resposta a diferentes tipologias de materiais para os quais queremos encaminhar para reciclagem.

12)    A TGR poderá ser objeto de aumento gradual, devendo assumir valores compreendidos entre os 22€ e os 40€, nos anos 2021 e 2025, respetivamente. Os municípios passam a beneficiar diretamente de parte das receitas relativas à TGR com vista à sua aplicação em investimentos no domínio da gestão de resíduos e da economia circular.

13)    Aplicação do princípio da regulação da gestão de resíduos através da autossuficiência e obedecendo a critérios de proximidade, preferencialmente em território nacional, podendo haver interditação das transferências de resíduos de e para o território nacional. Estas duas medidas que a Quercus já vem a apelar há algum tempo, e que deverão ser aplicadas em simultâneo.

Até ao próximo dia 20 de novembro está em consulta pública o diploma que aprova o novo regime geral da gestão de resíduos, o novo regime jurídico da deposição de resíduos em aterro, e procede à terceira alteração ao Decreto-Lei n.º 152-D/2017, de 11 de dezembro, que unifica o regime da gestão de fluxos específicos de resíduos sujeitos ao princípio da responsabilidade alargada do produtor (Unilex).

O contributo de todos é fundamental para corrigir os pontos mais frágeis que esta proposta de legislação apresenta, pelo que a Quercus apela à participação neste processo de consulta pública que decorre em:

https://www.consultalex.gov.pt/ConsultaPublica_Detail.aspx?Consulta_Id=169

Lisboa, 18 de novembro de 2020

A Direção Nacional da Quercus – Associação Nacional de Conservação da Natureza